No Canadá, o concerto de um aclamado pianista russo de 20 anos foi cancelado em meio a preocupações com seu silêncio sobre a invasão da Ucrânia. O diretor musical de uma orquestra em Toulouse, na França – que também é o maestro-chefe do Teatro Bolshoi em Moscou –, foi instruído a esclarecer sua posição sobre a guerra antes de sua próxima aparição. Em Nova York, Anna Netrebko, uma das maiores estrelas da ópera, viu seu reinado na Metropolitan Opera terminar depois que se recusou a denunciar o presidente russo, Vladimir Putin.
© Distributed by The New York Times Licensing Group Daniil Trifonov se apresenta com a Filarmônica de Nova York em concerto de Beethoven, em 17 de setembro de 2021. (Hiroyuki Ito/The New York Times)
À medida que cresce a condenação global ao ataque da Rússia contra a Ucrânia, as instituições culturais se movem com surpreendente velocidade para pressionar artistas russos a se distanciar de Putin, em um choque entre arte e política que está forçando as organizações a confrontar questões sobre liberdade de expressão e se devem policiar as opiniões dos artistas.
As instituições passaram a exigir que os artistas que apoiaram Putin no passado o condenem claramente e à invasão como pré-requisito para se apresentar. Outros estão verificando quem são seus colegas e analisando as postagens nas redes sociais para garantir que os artistas russos não tenham feito declarações controversas sobre a guerra. A Ópera Nacional Polonesa chegou ao ponto de abandonar a produção de “Boris Godunov”, de Mussorgsky, uma das maiores óperas russas, para expressar “solidariedade com o povo da Ucrânia”.
As tensões representam um dilema para as instituições culturais e aqueles que as apoiam. Há um bom tempo, muita gente tenta se esquivar dos conflitos causados pelos eventos atuais, e tem uma profunda crença no papel que as artes podem desempenhar na superação das hostilidades. Agora, os administradores artísticos, que têm pouca experiência geopolítica, encontram-se no meio de uma das questões mais politicamente carregadas das últimas décadas, com pouca experiência para se basear. “Estamos diante de uma situação totalmente nova. Nunca pensamos em política dessa maneira”, disse Andreas Homoki, diretor artístico da Ópera de Zurique.© Distributed by The New York Times Licensing Group Mariusz Kwiecien e Anna Netrebko em uma produção de “Eugene Onegin”, na Ópera Metropolitana de Nova York, em 13 de setembro de 2013. (Sara Krulwich/The New York Times)
A forma como os artistas russos têm sido questionados ameaça derrubar décadas de intercâmbio cultural, que perdurou mesmo durante as profundezas da Guerra Fria, quando a União Soviética e o Ocidente enviavam artistas de um lado para o outro em meio ao medo de uma guerra nuclear. O maestro russo Valery Gergiev, que há muito tempo é próximo de Putin, foi demitido do cargo de regente-chefe da Filarmônica de Munique, e seus compromissos internacionais foram cancelados. O Hermitage Amsterdam, museu de arte, rompeu os laços com o Hermitage em São Petersburgo. O Balé Bolshoi teve compromissos cancelados em Londres e Madri.
Citando essa tradição da Guerra Fria, a Cliburn – fundação em Fort Worth, no Texas, batizada em homenagem ao pianista americano Van Cliburn, cuja vitória no Concurso Internacional Tchaikóvski em Moscou em 1958 foi vista como um sinal de que a arte poderia transcender as diferenças políticas – anunciou que daria as boas-vindas a 15 pianistas nascidos na Rússia para uma audição para o Concurso Cliburn 2022, observando que eles não são funcionários de seu governo.
Jacques Marquis, presidente e CEO da Cliburn, afirmou que a organização sentiu que era importante se manifestar enquanto observava artistas russos sob escrutínio: “Podemos ajudar o mundo mantendo nossa posição e focando a música e os artistas.”
Mesmo que muitas instituições estejam ansiosas para mostrar apoio à Ucrânia e se distanciar de artistas que abraçam Putin, elas se sentem desconfortáveis em tentar vetar as opiniões dos artistas – e temem que os artistas russos, que muitas vezes precisam contar com o apoio do Estado para que sua carreira prospere em casa, enfrentem represálias se forem forçados a repudiar publicamente o Kremlin. “Você não pode simplesmente colocar todo mundo sob suspeita agora. Não se podem exigir declarações de fidelidade ou de condenação do que está acontecendo”, declarou Alexander Neef, diretor da Ópera de Paris.
A situação é tensa e muda depressa. Líderes de organizações estão enfrentando pressão de doadores, de membros do conselho e do público, sem mencionar as ondas de raiva nas mídias sociais, em que as campanhas para cancelar vários artistas russos rapidamente ganharam força.
As instituições também estão lutando para saber o que fazer com os russos, que estão entre seus doadores mais importantes. O Museu Guggenheim acaba de anunciar que Vladimir Potanin, um dos homens mais ricos da Rússia e grande benfeitor, estava deixando o cargo de curador.
Leila Getz, fundadora e diretora artística de uma série de recitais em Vancouver, na Colúmbia Britânica, cancelou a apresentação do pianista russo Alexander Malofeev, de 20 anos, prevista para agosto. Este não fez declarações sobre a guerra, nem tinha ligações conhecidas com Putin. Mas Getz divulgou um comunicado dizendo que não poderia “em sã consciência apresentar um concerto de qualquer artista russo neste momento, a menos que estejam preparados para falar publicamente contra essa guerra”. Pouco depois, ela recebeu dezenas de mensagens. Alguns a acusaram de exagero e exigiram que Malofeev fosse autorizado a se apresentar.
Em entrevista, Getz defendeu sua decisão, alegando que estava preocupada com a possibilidade de protestos. Ressaltou que não pediu a Malofeev que condenasse a guerra e que estava preocupada com sua segurança: “As primeiras coisas que me vieram à mente foram: por que eu quereria trazer um pianista russo de 20 anos a Vancouver e obrigá-lo a enfrentar protestos e pessoas se comportando mal dentro da sala de concertos, vaiando e gritando?”
Malofeev não quis comentar. Em um comunicado publicado no Facebook, ele escreveu: “A verdade é que todo russo se sentirá culpado durante décadas por causa de uma terrível e sangrenta decisão que nenhum de nós poderia influenciar e prever.”
Especialistas destacam que a pressão para adotar uma postura dura contra artistas russos pode levar ao fim de décadas de intercâmbio cultural. “Quanto mais antagonizamos, cortamos, proibimos e censuramos e quanto mais reagimos com xenofobia, mais jogamos nas mãos de Putin. Transformamos cada lado do conflito em uma caricatura rudimentar”, avaliou Simon Morrison, professor de música em Princeton que estuda a Rússia.
( Com Informações: The New York Times )